E se ainda estão interessadas no Father Mine, eis o capitulo seguinte (dez páginas!... Haja fôlego!)
Capítulo Nove
O Dr. Thomas Wolcott Franklin III tinha o segundo melhor consultório no complexo do Hospital St Francis.
No que dizia respeito a qualidade administrativa de bens imobiliários, a ordem hierárquica determinava os lucros, e como chefe de dermatologia, T.W. só estava abaixo de um outro chefe de departamento.
É claro que o facto de o seu departamento ser tão lucrativo era porque ele “se vendia”, como alguns académicos tradicionalistas afirmavam. Sob a sua supervisão, a dermatologia não só se encarregava de lesões e cancros e queimaduras, como também de patologias dérmicas crónicas como psoríase, eczema e acne, e tinha também uma subdivisão exclusivamente dedicada à cirurgia estética.
Liftings faciais. Liftings de sobrancelhas. Aumentos mamários. Lipoaspiração. Botox. Restylane. Uma centena de outros melhoramentos. O modelo de saúde era privado e praticado em moldes académicos, e os clientes ricos adoravam o conceito. A maior parte vinha da Grande Maçã… inicialmente, faziam a viagem por causa do anonimato, tinham tratamentos estéticos fora do círculo apertado da comunidade de cirurgiões plásticos de Manhattan, mas depois faziam-no pelo estatuto. Fazê-lo em Caldwell estava na moda e, graças a isso, apenas o chefe de cirurgia Manny Manello tinha uma melhor vista do consultório.
Bem, a casa de banho privativa de Manello até tinha uma banheira em mármore, não era só mármore nas bancadas e nas paredes, mas quem é que quer saber disso?
T.W. adorava as vistas. Adorava o consultório. Adorava o seu trabalho.
O que era bom, porque os dias começavam às sete da manhã e acabavam às… verificou as horas… quase às sete da tarde
No entanto, nessa noite, já deveria ter saído. T. W. tinha jogo de raquetebol todas as segundas à noite no Country Club de Caldwell… por isso estava um pouco confuso por ter concordado em ver agora um paciente. Não sabendo bem como, disse que sim e pediu à secretária que encontrasse um substituto para o jogo, mas ele jurava pela própria vida que não sabia como é que isso tinha acontecido.
Retirou uma folha de agenda impressa do bolso do peito do casaco branco e abanou a cabeça. Logo depois das sete horas estava o nome B. Nalla e cosmética laser. Caramba, não se lembrava de como tinha sido marcado, nem quem o fez, nem quem lhe tinha dado as referências…. Mas nada ia para a agenda sem a sua autorização.
Devia ser alguém importante. Ou o paciente de alguém importante.
Era evidente que andava a trabalhar em demasia.
T.W. entrou no sistema de registos médicos eletrónicos e fez uma busca, outra vez, à procura de B. Nalla. O resultado mais próximo era Belinda Nalda. Gralha? Podia ser. Mas a assistente saiu às seis, e parecia-lhe indelicado interrompê-la durante o jantar com a família só para perguntar que-diabo-é-isto?
Levantou-se, verificou a gravata e abotoou o casaco branco, depois pegou no trabalho a rever e foi esperar no fundo andar de baixo que B. Nalla ou Nalda aparecesse.
Ao sair do último andar do departamento onde havia uma quantidade de consultórios e áreas de tratamento, pensou na diferença que existia entre aquela área e a de baixo da clínica privada. Noite e dia. Aqui a decoração era de hospital: carpetes escuras, paredes creme, muitas portas creme. Os quadros que pendiam das paredes estavam emolduradas em aço inoxidável e as plantas eram poucas e dispersas.
Em baixo? Era um Spa de luxo com serviços de receção feito à maneira luxuosa que todos os ricos esperam: as salas de tratamento tinham televisão HD, DVD, sofás, cadeiras, mini frigorífico com sumos de frutos esquisitos, comida que podia ser pedida a restaurantes, internet sem fios. A clínica até tinha um protocolo com o Hotel Stillwell de Caldwell – a grande dama de cinco estrelas da parte norte do estado de Nova Iorque para os pacientes poderem lá passar a noite depois das consultas.
Excessivo? Sim. Tinham de pagar sobretaxa? Obviamente. Mas a verdade é que os reembolsos do governo eram baixos, os seguros negavam a todo o momento que os seus serviços médicos fossem necessários e T.W. precisava de fundos para cumprir a sua missão.
Agradar aos ricos era o caminho.
De facto, T.W. tinham duas regras para os seus médicos e enfermeiras. A primeira, oferecer o melhor tratamento do planeta com compaixão. A segunda, nunca virar as costas a um cliente. Nunca. Especialmente às vítimas de queimaduras.
Independentemente dos custos e do tempo de tratamento da queimadura, ele nunca disse que não. Especialmente às crianças.
Se era visto como um vendido à procura de dinheiro? Ótimo. Sem problemas. Ele não fazia alarido dos serviços gratuitos e se os colegas nas outras cidades queriam retratá-lo como um ganancioso, ele aguentava.
Quando chegou aos elevadores, foi com a mão esquerda, aquela que tinha cicatrizes e a que faltava o dedo mindinho e tinha a pele arruinada, que pressionou o botão para descer.
Ele faria tudo para que as pessoas tivessem a ajuda que precisavam. Alguém o fizera por ele e isso fez toda a diferença na sua vida.
No primeiro andar, virou à direita e foi por um corredor estreito até chegar à porta de mogno da entrada da clínica de cosmética. Em letras discretas gravadas no vidro, estava o seu nome e de mais sete colegas seus. Não se mencionava que tipo de especialidade era lá praticada.
Os pacientes disseram-lhe que gostavam da exclusividade, do género clube-só-para-membros.
Usando um cartão magnético, entrou. A receção estava a meia-luz e não porque tivessem apagado as luzes depois das horas de expediente; as luzes fortes não eram boas para pessoas com uma certa idade, tanto antes como depois de operações, para além disso, a atmosfera calma e acolhedora fazia parte do ambiente spa que se pretendia recriar. O chão era em suave cor de areia, as paredes de um confortante vermelho escuro e uma fonte branca e creme com pedras castanhas brilhava na zona central.
- Marcia? – Chamou, pronunciando o nome à moda europeia.
- Olá, Dr. Franklin, - respondeu uma voz suave das traseiras onde ficava o consultório.
Quando Marcia apareceu na esquina, T.W. pôs a mão esquerda no bolso. Como sempre, ela parecia ter saído da Vogue com o seu cabelo preto bem penteado e o fato feito por medida.
- O seu paciente ainda não chegou. – Disse com um sorriso sereno. – Mas tenho a segunda sala de laser preparada.
Marcia era uma mulher de quarenta anos perfeitamente retocada, casada com um dos da cirurgia plástica, e, segundo T.W., a única mulher do planeta com exceção da Ava Gardner que podia usar batom vermelho vivo e parecer cheia de classe. Vestia Chanel e foi contratada e paga para ser o testemunho vivo do trabalho excecional que ali se realizava.
O facto de ter sotaque aristocrático francês foi um bónus. Principalmente, com os novos-ricos.
- Obrigado, - disse T.W. – Se tivermos sorte, o paciente chegará cedo e poderá sair.
- Então não precisa de uma assistente?
Isto era outra das coisas boas de Marcia: Não era só decorativa; era útil, uma enfermeira sempre pronta a dar assistência.
- Obrigado pela oferta, mas mande só entrar o paciente que eu encarrego-me de tudo.
- Até do registo?
Ele sorriu.
- Tenho a certeza que queres ir ter com o Phillippe a casa.
- Ah, oui. É o aniversário dele.
Ele piscou-lhe o olho.
- Ouvi dizer qualquer coisa a esse respeito
Ela corou, uma das coisas encantadoras dela. Podia ter classe, mas também era sincera.
- O meu marido diz para me encontrar com ele na porta da frente. Diz que tem uma surpresa para a esposa.
- Eu sei o que é. Vai gostar.
Mas que mulher não havia de gostar de umas pedras da Harry Winston?
Marcia levou a mão à boca a esconder o sorriso e o súbito rubor.
- Ele é bom demais para mim.
T.W. sentiu uma pontada momentânea, a pensar quando tinha sido a última vez que comprara uma coisa frívola e bonita para a esposa. Foi… bem, comprou-lhe um Volvo o ano passado.
Uau.
- Você merece. – Disse bruscamente a pensar, por algum motivo, no número de noites em que a esposa comeu sozinha. – Por favor, vá para casa e festeje.
- Irei, doutor. Merci mille fois. - Marcia fez uma vénia e foi à mesa da receção… que não era mais do que uma mesa antiga com um telefone escondido numa gaveta e um computador a que se tinha acesso depois de abrir um painel de mogno. – Vou só sair do sistema e aguardar o paciente para o receber.
- Tenha uma excelente noite.
Assim que T.W. se virou e a deixou com a sua felicidade, tirou a mão arruinada do bolso. Escondia-a sempre dela, parte do trauma de ter sido um adolescente com aquela coisa maldita. Era tão ridículo. Era feliz no casamento e não se sentia minimamente atraído por Marcia, por isso não se devia importar. No entanto, as cicatrizes deixavam feridas por dentro e tal como a pele que não se curava direito por fora, de vez em quando sentiam-se pontos ásperos por dentro.
Os três lasers da clínica eram usados para tratar varizes nas pernas, hemangiomas e imperfeições avermelhadas na pele, assim como para fazer peelings e remover marcas tuadas nos pacientes com cancro que receberam radiações.
B. Nalla podia precisar de uma dessas coisas… mas se fosse dado a apostas… ia pelo peeling. Parecia-lhe o lógico… fora de horas, na clínica do andar de baixo, com um nome misterioso. Era sem dúvida alguém muito rico com uma necessidade terrível de confidencialidade
Ainda assim, há que respeitar a galinha dos ovos de ouro.
Entrando na segunda sala de laser, a sua preferida sem nenhum motivo para o ser, sentou-se atrás da secretária de mogno e entrou no computador, a verificar os pacientes que viria de manhã para depois se concentrar nos relatórios dermatológicos dos colegas e que ele trouxera consigo.
À medida que os minutos passavam, começou a ficar aborrecido com aquela gente rica e as suas exigências e a ideia da importância que tinham no mundo. Está bem… alguns eram simpáticos, e todos ajudavam nos seus esforços, mas caramba, às vezes queria estrangulá-los até lhes sair a mania das grandezas…
Uma mulher de um metro e oitenta aparece à porta da sala e ele estacou. Vestia-se de forma simples, uma blusa branca enfiada numas calças de ganga ultrajustas azuis, mas tinha uns sapatos de estilete de sola vermelha Christian Louboutin nos pés e uma Prada ao ombro.
Ela era exatamente o seu tipo de cliente privado, e não era só por usar acessórios de três mil dólares. Ela era… indescritivelmente bonita, cabelo castanho-escuro e olhos de safira e um rosto por que muitas mulheres estariam dispostas a pagar para o ter com operações plásticas.
T.W. levantou-se devagar, enfiando bem fundo a mão esquerda no bolso.
- Belinda? Belinda Nalda?
Ao contrário de outras mulheres da sua classe, que era obviamente estratosférica, não entrou a dançar como se fosse dona daquilo. Avançou apenas um passo.
- Na realidade, é Bella. – A voz dela fez com que os olhos quisessem rolar para dentro da cabeça. Profunda, rouca… mas amável.
- Eu, ah… - T.W. clareou a garganta. – Sou o Dr. Franklin.
Estendeu a mão boa e ela cumprimentou-o. Enquanto apertavam as mãos, ele soube que a estava a fitar, e não profissionalmente, mas não conseguia evitar. Já tinha visto muitas mulheres bonitas, mas nada como ela. Era quase como se ela fosse de outro planeta.
- Por favor… por favor, entre e sente-se. – Indicou-lhe a cadeira estofada de seda perto da secretária. – Vamos ver o seu historial médico e…
- Não sou eu a paciente. É o meu hel… marido. – Respirou fundo e olhou por cima do ombro. – Querido?
T.W. fugiu para trás e bateu na parede com tanta força que o quadro de aguarelas atrás dele saltou. O primeiro pensamento que teve quando viu o que entrou foi aproximar-se do telefone para poder chamar a segurança
O homem tinha a cara cheia de cicatrizes e olhos de assassino em série, e quando entrou, ocupou a sala toda: Era alto e largo o suficiente para ser classificado como peso pesado, ou talvez dois deles juntos, mas Cristo, isso era o menor dos problemas quando ele olhava para alguém fixamente. Estava morto por dentro. Não tinha absolutamente nenhum sentimento. O que fazia dele capaz de qualquer coisa.
E T.W. podia ter jurado que a temperatura tinha mesmo baixado quando ele se aproximou e ficou de pé ao lado da esposa.
A mulher falou calmamente.
- Estamos aqui para ver se as tatuagens dele podem ser removidas.
T.W. engoliu em seco e disse a si próprio para se recompor. Ok, talvez este brutamontes fosse só a típica estrela de pop rock. O gosto musical de T.W. era mais jazz, por isso não havia motivo para ele reconhecer o tipo de calças de cabedal e camisola de gola alta e grande furo na orelha esquerda, mas podia explicar algumas coisas. Incluindo a esposa que era linda como um modelo. A maior parte dos cantores têm mulheres bonitas, não têm?
Pois… o único problema nessa teoria era o olhar negro. Aquilo não era aspeto de duro feito para publicidade e atrair as atenções. Havia violência ali.
Depravação verdadeira.
- Doutor? – Perguntou a mulher. – Há algum problema?
- Ele engoliu em seco outra vez, a arrepender-se de ter dito a Marcia para ir embora. Pensando bem, mulheres e crianças primeiro. É mais seguro ela não estar lá.
- Doutor?
Ele continuou a olhar para o tipo – que não fez mais nada senão respirar.
Diabo, se o filho da mãe enorme quisesse, a esta hora já tinha arrasado com aquilo doze vezes. Em vez disso? Estava ali de pé.
E estava ali de pé.
E… de pé.
Finalmente, T.W. aclarou a garganta e convenceu-se que se fosse para haver confusão, ela já teria aparecido.
- Não, não há problema nenhum. Vou-me sentar. Agora.
Sentou-se à secretária, curvou-se para o lado, abriu um frigorífico com uma variedade extensa de águas com gás.
- Querem beber alguma coisa?
Quando ambos disseram que não, abriu uma garrafa de Perrier com limão e emborcou metade como se fosse whiskey.
Bem. Preciso do historial médico.
A esposa sentou-se e o marido ficou por trás dela, olhos fixos em T.W.. Esquisito. Estavam de mãos dadas e T.W. teve a impressão de que a esposa era a corda que, de alguma forma, o suportava.
Recorrendo ao treino, pegou na sua caneta Waterman e fez as perguntas habituais. A esposa respondia: Não tinha alergias. Não fez nenhuma operação. Não tinha problemas de saúde.
- Ah… onde são as tatuagens?
Por favor, Deus, que estejam todas acima da cintura.
- Nos pulsos e no pescoço. – Olhou para o marido com um olhar luminoso. – Mostra-as, querido.
O homem puxou uma manga para cima. T. W. franziu o sobrolho, curiosidade médica a controlá-lo. A marca negra era incrivelmente densa e apesar de não ser um especialista em tatuagens, podia dizer com segurança que nunca tinha visto uma coloração tão profunda antes.
- Isso é muito escuro. – Afirmou a inclinar-se. Alguma coisa lhe disse para não tocar no homem, a menos que fosse necessário, e seguiu o instinto deixando as mãos onde estavam. – Isso é muito muito escuro.
Eram quase algemas, pensou.
T.W. recostou-se na cadeira.
- Não tenho a certeza de que seja um bom candidato para a remoção a laser. A tinta parece ser tão densa que no mínimo precisará de múltiplas sessões para conseguir penetrar na pigmentação.
- Apesar de tudo, vai tentar, não vai? – Pediu a esposa. – Por favor?
As sobrancelhas de T.W. ergueram-se. Por favor não era expressão existente no vocabulário da maioria dos seus pacientes. E o tom de voz também não estava no sítio certo, o seu desespero resignado era o que se encontrava nos familiares dos pacientes tratados no andar de cima – aqueles com problemas de saúde que lhes afetavam a vida e não eram apenas pés de galinha e rugas de expressão.
- Posso tentar, - disse, consciente que se ela usasse aquele tom de voz novamente, ela conseguiria que ele comesse a própria perna só para lhe agradar.
Olhou para o marido.
- Importa-se de tirar a camisola e sentar-se na marquesa?
A esposa apertou-lhe a grande mão na dela.
- Está tudo bem.
As bochechas chupadas do marido e o seu maxilar duro viraram-se para ela, e parecia retirar força dos olhos dela. Pouco depois foi até à marquesa, sentou o corpo enorme nela e tirou a camisola de gola alta.
T.W. deixou a cadeira e foi à volta…
Estacou. As costas do homem estavam cobertas de cicatrizes. Cicatrizes… que pareciam ter sido deixadas por chicotes. Em toda a sua carreira nunca tinha visto nada que se lhe assemelhasse… e sabia que tinham sido feitas por um qualquer tipo de tortura.
- As minhas tatuagens, doutor, - disse o marido num tom cruel. – Era suposto estar parado a olhar para as minhas tatuagens, muito obrigado.
T.W. pestanejava, o marido abanou a cabeça.
- Isto não vai dar resultado.
A esposa apressou-se a ir ter com ele.
- Vai dar, vai…
- Vamos procurar outro.
T. W. colocou-se à frente do homem a bloquear-lhe a saída. E deliberadamente tirou a mão esquerda do bolso. O olhar negro baixou e fixou-se na pele destruída e no mindinho arruinado.
O paciente olhou-o surpreendido; de seguida os olhos semicerraram-se como se imaginasse até onde iria a queimadura.
- Até ao ombro e pelas minhas costas abaixo, - disse T.W. – Incêndio em casa quando tinha dez anos. Fiquei encurralado no meu quarto. Estava consciente enquanto ardia… durante todo o tempo. Passei oito semanas no hospital. Fizeram-me dezassete intervenções.
Fez-se silêncio, como se o marido estivesse a medir as implicações mentalmente: se estava consciente, sentiu o cheiro da carne a queimar e sentiu cada uma das dores que o atingiu. E o tempo no hospital… as cirurgias…
De repente, todo o corpo do homem relaxou, toda a tensão a evaporar como se tivessem aberto uma válvula.
T.W. já tinha visto isso a acontecer vezes e vezes em pacientes com queimaduras. Se o médico soubesse o que se estava a passar, não porque lhe ensinaram na universidade, mas porque o viveu, o paciente sentia-se mais seguro: Os dois eram membros do mesmo clube vergonhoso e exclusivo.
- Então, consegue fazer alguma coisa por isto, doutor? – Perguntou o homem que apoiava os braços nas pernas.
- Posso tocá-lo?
O lábio com a cicatriz ergueu-se ligeiramente, como se tivesse dado mais um ponto ao médico.
- Sim.
Deliberadamente, T.W. usou as duas mãos nos pulsos do paciente para ele poder ter tempo suficiente para ver bem as cicatrizes do médico e relaxar ainda mais. Quando terminou, afastou-se.
- Bem, não tenho a certeza de que saiam, mas vamos experimentar. – T. W. olhou para cima e parou. As iris do homem… estavam amarelas. Já não eram negras.
- Não se preocupe com os meus olhos, doutor.
Surgida do nada, a ideia de que tudo estava bem com o que viu inundou-lhe o cérebro. Certo. Não. Há. Problema.
- Onde é que eu ia… Ah, sim. Vamos experimentar o laser. – Virou-se para a esposa. – Se calhar gostaria de puxar uma cadeira e segurar-lhe a mão? Acho que ele se sentiria mais confortável assim. Vou começar num pulso e veremos o que acontece.
- Tenho de me deitar? – Perguntou sombriamente o paciente. – Porque não me parece… pois, eu provavelmente não me sentirei bem com isso.
- Claro que não Pode ficar sentado, inclusivamente quando for o pescoço, aí arranjo-lhe um espelho para poder ver. Vou-lhe dizer exatamente o que estou a fazer, o que poderá sentir e podemos parar a qualquer altura. É o seu corpo. O senhor controla. Está bem?
Fez-se um momento de silêncio. Os dois a olhar para ele. Diz a esposa com a voz fragilizada:
- O senhor, Dr Franklin, é um verdadeiro amor.
O paciente tinha uma tolerância incrível à dor, pensou T.W. uma hora depois quando acionou o botão no chão e o laser projetou outro raio vermelho na pele tingida daquele grosso pulso. Uma tolerância incrível à dor. Cada disparo era como ser atingido por uma tira de borracha, o que não era grande coisa se fosse feito uma ou duas vezes. Mas, depois de dois minutos, a maioria dos pacientes precisava de uma pausa. Este tipo? Nem piscava, nem uma única vez. Por isso, T.W. continuou e continuou.
Claro que com os mamilos furados como estavam e as cicatrizes todas, ele estava intimamente familiarizado com a agonia, fosse por opção ou não. Infelizmente, as tatuagens eram extremamente resistentes ao laser. T. W. suspirou numa praga e abanou a mão direita, que estava a ficar cansada.
- Não faz mal, doutor, - disse o paciente suavemente. – Deu o seu melhor.
- Não consigo compreender. – Tirou os óculos de proteção e olhou para a máquina. Por instantes pensou se a coisa estava a funcionar em condições. Mas ele viu o laser. – Não há uma única mudança na coloração.
- Doutor, a sério, está tudo bem. – O paciente tirou os óculos e sorriu um pouco. – Agradeço por ter levado isto tão a sério.
- Diabos. – T.W. voltou a sentar-se no banco a olhar para a tinta.
Vindas do nada, as palavras saltaram-lhe da boca, apesar de não serem propriamente muito profissionais.
- Não se voluntariou para as ter, pois não?
A esposa agitou-se como se temesse a resposta. Mas o marido só abanou a cabeça.
- Não, doutor, não me voluntariei.
- Diabos. – Cruzou os braços e reviu o seu conhecimento enciclopédico acerca da pele humana. – Só não percebo o porquê… e estou a tentar pensar noutras opções. Não acredito que a remoção química seja mais eficaz. Quer dizer, levou com tudo o que o laser tinha para dar.
O marido percorreu os dedos curiosamente elegantes pelo pulso.
- Podemos cortá-las?
A esposa abanou a cabeça.
- Não me parece que seja uma boa ideia.
- Ela tem razão, - murmurou T.W. Inclinou-se e fez pressão na pele. – Tem uma excelente elasticidade, mas, como está nos seus vinte e tais anos, é normal. Isto é, tinha que ser cortada às tiras e coser. Ficava com cicatrizes. E não recomendaria no pescoço. Era demasiado arriscado por causa das artérias.
- E se as cicatrizes não fossem um problema?
Ele não ia tocar nesse assunto. Cicatrizes eram obviamente um problema, dadas as costas do homem.
- Não posso recomendar.
Fez-se um longo silêncio, enquanto ele continuava a pensar nas hipóteses e eles deram-lhe tempo. Quando esgotou as opções, ficou simplesmente a olhar para os dois. A bela esposa sentada junto do marido assustador, com uma mão no braço dele, a outra nas costas mutiladas, a acariciá-lo.
Era óbvio que as cicatrizes dele não lhe diminuíam o valor aos olhos dela. Ele era perfeito e bonito para ela apesar do estado da pele.
T.W. pensou na sua esposa. Que era exatamente como ela.
- Sem ideias, doutor? – Perguntou o marido.
- Lamento. – Virou os olhos para a sala, odiando sentir-se tão impotente. Como médico tinha sido treinado para fazer alguma coisa. Como humano com coração ele precisava de fazer alguma coisa. – Tenho muita pena.
O marido mostrou aquele pequeno sorriso outra vez…
- Trata muitas pessoas com queimaduras, não trata?
- É a minha especialidade. Crianças, principalmente. Vocês sabem, por causa do…
- Sim, eu sei. Aposto que é muito bom para elas.
- E como não ser?
O paciente inclinou-se para a frente e pôs-lhe a enorme mão no ombro.
- Nós vamos embora, doutor. Mas a minha shellan vai-lhe deixar o pagamento naquela secretária ali.
T.W. olhou para a esposa, que estava dobrada sobre o livro de cheques, e abanou a cabeça.
- Porque é que não nos consideramos quites? Isto não conseguiu ajudar em nada.
- Nã, roubamos-lhe o seu tempo. Nós pagamos.
T.W. praguejou baixinho algumas vezes. Depois desabafou:
- Merda.
- Doutor? Olha para mim?
T.W. olhou para o tipo. Caramba, aquele olhar amarelo era realmente hipnótico.
- Uau, tem uns olhos incríveis.
O paciente sorriu mais abertamente, a mostrar dentes que não eram… normais.
- Obrigado, doutor. Agora ouça. Provavelmente, vai ter sonhos acerca disto e eu quero que se lembre que saí daqui bem, ok?
T. W. franziu o sobrolho.
- Porque é que havia de sonhar…
- Lembre-se. Eu estou bem com o que aconteceu. Conhecendo-o, isso é o que mais o vai preocupar.
- Continuo sem perceber porque é que eu havia de…
T. W. pestanejou e olhou à volta da sala. Estava sentado no banco de rodas usado para tratar pacientes, e estava uma cadeira puxada para perto da marquesa, e ele tinha os óculos de proteção na mão… mas não havia ali ninguém para além dele.
Estranho. Podia jurar que estava a falar com o mais fantástico…
Como ficou com dor de cabeça, esfregou as têmporas e ficou subitamente exausto… exausto e curiosamente triste, como se tivesse falhado nalguma coisa importante para ele.
E preocupado. Preocupado com um hom…
A dor de cabeça piorou, e com um gemido levantou-se e foi até à secretária. Estava lá um envelope, um envelope normal cor de creme com uma letra fluente que dizia: Em agradecimento a T.W. Franklin, para ser aplicado, por sua indicação, a favor dos bons trabalhos do seu departamento.
Virou-o, abriu-o e tirou um cheque.
O queixo caiu-lhe ao chão.
Cem mil dólares. Passado ao Departamento de Dermatologia do Hospital St Francis.
O nome da pessoa era Fritz Perlmutter, não tinha endereço, só uma discreta anotação: Banco Nacional de Caldwell, Grupo de Clientes Privados.
Cem mil dólares.
A imagem de um marido com cicatrizes e de uma esposa belíssima flutuou-lhe na mente e logo foi enterrada pela dor de cabeça.
T.W. pegou no cheque e enfiou-o no bolso da camisa, depois apagou a máquina do laser, o computador e saiu pela porta dos fundos da clínica, apagando todas as luzes.
A caminho de casa, deu consigo a pensar na esposa, de como ela agiu quando o viu pela primeira vez depois daquele incêndio decorrido há décadas. Ela tinha onze anos e tinha-o ido visitar com os pais. Estava absolutamente mortificado quando a viu entrar pela porta, porque já tinha um fraquinho por ela e ele estava ali, numa cama de hospital, com ligaduras a cobrir-lhe metade do corpo.
Ela tinha sorrido para ele e pegou-lhe na mão boa e disse-lhe que não interessava como estava o braço porque ela queria continuar a ser amiga dele.
Ela foi sincera. E depois provou-o uma e outra vez.
Chegou até a gostar dele mais do que como amigo.
Às vezes, T.W. pensou, o facto de a pessoa de quem gostamos não se importar acerca do nosso aspeto físico era a melhor forma de cura que havia.
Enquanto conduzia, passou por uma joalharia que estava bem fechada para a noite, uma florista, um antiquário onde a sua esposa gostava de ir.
Ela dera-lhe três filhos. Quase vinte anos de casamento. E espaço para ele construir a carreira.
Ele deu-lhe muitas noites solitárias. Jantares só com as crianças. Férias limitadas a um ou dois dias agarradas a conferências de dermatologia.
E um Volvo.
T. W. demorou vinte minutes a chegar a um Hannaford que estava aberto toda a noite, entrou a correr no supermercado, apesar de não ter de se preocupar com a hora do fecho.
A secção das flores era à esquerda das portas automáticas. Quando viu as rosas e os crisântemos e os lírios, pensou em entrar com o Lexus de traseira e encher a mala. E o banco de trás.
No final, escolheu uma única flor que levou com cuidado entre o polegar e o indicador até chegar a casa.
Estacionou na garagem, mas não entrou pela cozinha. Em vez disso, foi até à porta da frente e tocou à campainha.
A cara familiar e amorosa da esposa apareceu a espreitar pela comprida e estreita janela da porta da entrada tipo colonial. Parecia confusa quando abriu a porta.
- Esqueceste-te da…
T.W. estendeu-lhe a flor com a sua mão queimada.
Era uma simples e pequena margarida. Exatamente igual à que ela lhe levara uma vez por semana ao hospital. Durante dois meses consecutivos
- Não digo obrigado as vezes suficientes, - murmurou T.W.. – Ou amo-te. Ou que ainda te acho tão bonita como no dia em que casamos.
A mão da esposa tremia quando recebeu a flor.
- T.W… Estás bem?
- Deus… só o teres de perguntar porque te trago uma flor…
Abanou a cabeça e abraçou-a firmemente.
- Desculpa.
A filha adolescente passou por eles, revirou os olhos antes de subir as escadas.
- Arranjem um quarto.
T.W. afastou-se, prendeu o cabelo sal e pimenta da esposa atrás das orelhas.
- Acho que devíamos seguir-lhe o conselho, que dizes? E, já agora, vamos para fora no nosso aniversário… e não a uma conferência.
A esposa sorriu e depois ficou felicíssima.
- O que é que te deu?
- Eu vi um paciente com a esposa esta noite… - fechou os olhos de dor e esfregou as têmporas. – Quer dizer… o que é que eu estava a dizer?
- E se jantássemos? – Perguntou a esposa, enlaçando-o. – E depois arranjávamos o tal quarto?
T.W. apoiou-se na esposa enquanto ela fechava a porta. Ao seguirem para a cozinha, ele beijou-a.
- Parece-me perfeito. Simplesmente perfeito.
Perfeito, perfeito é o meu Zsadist!