Leitura De Ficção
A literatura deve ser útil?
Dois estudos recentes concluíram que ficção literária séria deixa as pessoas mais empáticas, e humanistas em toda parte estão brindando em comemoração. Mas eu me pergunto se isso é uma vitória do enriquecimento intangível e encantamento do humanismo, ou do poder de medição da ciência social.
Os dois estudos, um de dois psicólogos da New School [N/T: link para o site da universidade adicionado], e outro conduzido por pesquisadores da Holanda, separaram os participantes em alguns grupos. A estratégia foi quase a mesma nos dois estudos. No experimento da New School, um grupo leu exemplos selecionados de ficção literária (trechos de Louise Erdrich, Don DeLillo, e outros); outro leu ficção comercial, e a outro grupo foi dado não-ficção séria ou absolutamente nada. Foi solicitado que os sujeitos descrevessem os próprios estados emocionais, ou instruídos, entre outros testes, a observar fotografias de olhos de pessoas e tentar deduzir a partir das imagens o que as pessoas estavam sentido quando as fotos foram feitas.
Os resultados foram animadores para todas as pessoas que já se encontraram, durante o primeiro ano da faculdade, apaixonadamente a citar, para qualquer um que estivesse perto o suficiente para ouvir, o comentário de Kafka que diz que literatura de qualidade é “um machado para quebrar o mar congelado dentro de nós”. Os indivíduos que tinham lido ficção literária apresentaram inteligência emocional mais elevada ou demonstraram, nos diversos testes aplicados a eles, que os níveis de empatia deles tinham ultrapassado os dos colegas leitores de literatura popular e de não-ficção.
As conclusões dos estudos são também particularmente gratificantes à luz do novos núcleos curriculares padronizados, velozmente adotados por diretorias locais de ensino pelo país, que destacam não-ficção, até mesmo ressaltando a leitura de horários de trem e de ônibus acima de literatura imaginativa. Parecia que finalmente estamos diante de um desmascaramento apropriado dessa abordagem enviesada de ensino da arte de ler.
Entretanto, existe outra maneira de olhar as conclusões dos estudos. Em vez de declarar a superioridade da ficção em comparação com as habilidades práticas supostamente obtidas pela leitura de não-ficção, os estudos deixam subentendido que os efeitos práticos são um parâmetro indispensável pelo qual avaliar as qualidades da ficção. Ler ficção é bom, de acordo com os estudos, porque ela te transforma num agente social mais eficaz. O que é essencialmente o que ser capaz de ler os horários de um trem também faz por você.
Pessoas nos Estados Unidos sempre se sentiram desconforto com qualquer atividade cultural que não se dirige para resultados concretos. “Aquele que desperdiça o valor de um groat de seu tempo por dia, um dia após o outro, desperdiça o privilégio de usar cem libras a cada dia” [N/T: groat é o nome de uma moeda que existiu no Reino Unido]: ainda que Benjamin Franklin tenha sido ele próprio um tanto indiferente para dinheiro, o sentimento que ele expressou nesse conselho se tornou uma marca característica do caráter national. Ociosidade ainda é uma abominação na vida americana (Kim Kardashian, que tem incansavelmente transformado o tempo livre dela em uma indústria lucrativa, no fundo é uma calvinista). E a ação de inventividade da escrita e leitura de ficção é ócio no estado mais puro, nem promete nem direciona a qualquer resultado prático ou concreto. Do didático McGuffey Readers [N/T: uma coleção de livros educativos] que durou da metade do século XIX até a metade do século XX ao “Book of Virtues” de William Bennett em nossa própria época (uma resposta liberal, “A Call to Character” de Colin Greer e Herbert Kohl, foi publicada alguns anos depois), o impulso americano de dar lugar para a literatura fazendo com que ela fique atrelada a um propósito socialmente útil tomou diversas formas. Você pode até dizer que duas personagens americanas arquetípicas da ficção, Huck Finn e Tom Sawyer, inventados pelo sarcástico mais veemente do país, são essencialmente argumentos a favor da superioridade do ócio perante qualquer atividade americana moralmente, socialmente ou financialmente útil.
Talvez seja adequado, neste nosso momento de medição ardente — visualizações de página, percepções neurobiológicas, a coleta de dados pessoais, os mistérios da monetização e equações — que ficção também deva encontrar a própria justificativa pelo fornecimento de uma qualidade socialmente útil tal como a empatia. Ainda que McGuffey Readers e similares utilizem literatura para tentar ensinar pessoas jovens com moralidade cívica e religiosa, afirmar que ficção literária fortalece empatia são outros quinhentos.
Ainda que empatia tenha se tornado algo como a característica celebrada da inteligência emocional, ela não necessariamente tem qualquer relação com a sensibilidade e gentileza popularmente atribuida a ela. Algumas das pessoas mais empáticas que você vai encontrar são empresários e advogados. Eles conseguem captar os sentimentos de outra pessoa num instante, atuar com base neles, e fechar um contrato ou ganhar uma ação. O resultado pode muito bem deixar a outra pessoa se sentindo angustiada ou derrotada. De outra forma, todos nós conhecemos pessoas introvertidas que gostam de ler e que não são boas em compreender as outras pessoas, ou, se são, não possuem a habilidade para agir a partir do que perceberam sobre a outra pessoa.
Entrando num domínio completamente diferente, empatia caracteriza certos sádicos. Diferenciar as gradações mais refinadas de desconforto e dor em outra pessoa é o fundamento do prazer de um sádico. O dom da empatia pode levar a generosidade, caridade, e sacrifício próprio. Também pode capacitar alguém a manipular o outro com grande sutileza e refinamento.
Literatura pode também ter me ensinado sobre a natueza complexa da empativa. Não existe, por exemplo, personagem alguma mais empática em romance ou no palco do que Iago, que consegue perceber as menores variações no estado emocional de Othello. Othello, por outro lado, é uma criatura nobre e magnânima — mesmo que arrogante e afetado também — que é absolutamente desprovido do dom de perceber os estados emocionais de outro. Se ele tivesse a metade da empatia de Iago, ele teria sido capaz de reconhecer o ciúme que consumia o tenente traiçoeiro dele. A peça toda é uma lição objetiva sobre o preparo emocional necessário para passar à frente de outras pessoas, ou para se proteger das conspirações de outras pessoas. Mas ninguém — e estudo algum — é capaz de dizer com certeza se a peça produz pessoas mais compreensivas, ou mais Iagos.
De fato, o que nenhum dos dois estudos conseguiu foi medir se as respostas empáticas produziram sentimento de compreensão. Identificação empática com as provações sofridas pelo asno de ouro de Apuleius, Moll Flanders de Defoe, King Lear de Shakespeare — uma peça que Dr. Johnson queria que fosse feita com um final feliz revisado porque ele afirmou que o espetáculo de sofrimento nela era muito para suportar — Raskolnikov de Dostoevsky, Alyosha, ou Prince Myshkin, Emma Bovary, para não citar os protagonistas de misântropos modernistas semelhantes a Céline, Gide, Kafka, Mann, entre outros — compartilhamento empático das emoções dessas personagens poderia muito bem deixar uma pessoa introvertida, afastada da humanidade completamente. Ainda assim mesmo se empatia fosse sempre a característica benigna, beneficente, socialmente produtiva como é celebrada, argumentar que produzir empatia é a qualidade básica da literatura é estreitar a arte, não uma nova expansão animadora dela.
A falta de utilidade prática da ficção é o que dá a ela a liberdade especial que ela tem. Quando Auden escreveu que “poesias não fazem coisa alguma acontecer”, ele não estava reclamando, ele estava eufórico. Ficção pode deixar as pessoas mais empáticas — ainda que eu esteja disposo a apostar que as pessoas que respondem mais intensamente a ficção de início já possuem mais empatia. Mas o que a literatura faz melhor é não fazer nada em particular ou especializado ou que sequer possa ser calculado facilmente.
A natureza multifatorial da ficção é o motivo pelo qual tantas pessoas atribuem tantos efeitos para literatura de imaginação, alguns deles contraditórios: catarse (Aristotle); corrupção perigosa do espírito (Plato); perda fervorosa das morais (Rousseau); escape redentor da personalidade (Eliot); criação provedora de poder além das fronteiras da moralidade (Joyce). Ficção arruinou Don Quixote, o jovem Werther, e Emma Bovary, mas salvou Cervantes, Flaubert e Goethe.
É seguro dizer que, do mesmo jeito que a própria vida, as propriedades da ficção são incontáveis e impossíveis de serem medidas. Se a arte é feita ex nihilo — do nada — então ler é feito in nihilo, ou para nada. Ficção se desdobra pela sua imaginação em camadas interligadas de significado que tiram de nossos ombros o difícil peso de fatos inflexíveis. Ela fala na própria linguagem particular dela de infinitas nuances e variações. Um conto é, se você me permite, um pedaço tornado mortal tranquilizadoramente do infinito oceânico de onde viemos e para onde vamos voltar. Isso é liberdade, e isso é alegria — e então é o retorno para o desafio da rotina, à luta diária, e para a necessidade de atribuir significado específico para o que as pessoas estão pensando e sentido, e para a urgência de tentar, pelo amor ao dinheiro, ganhar dinheiro com isso.
Lee Siegel é o autor de duas coleções de críticas, “Falling Upwards: Essays in Defense of the Imagination”, [N/T: em tradução livre: "Caindo para cima: artigos em defesa da imaginação] e “Not Remotely Controlled: Notes on Television” [N/T: em tradução livre: "Não controlado por controle remoto: comentários sobre televisão"]