A HISTÓRIA DO FILHO - Parte 6

Boas, amantes do blogue!

Temendo que algumas das minhas comentadoras não consigam ter uma vida sossegada por minha causa (margarida ladeira, Alex Nason, Cat Rodrigues, Viviana Pereira, Marg2, alguns anónimos, entre outros) vou deixar de me armar em tradutora.

Tenho que zelar pela respeitabilidade deste blogue e assegurar-me que as minhas chefes lindas não me mandam para o desemprego virtual. Para além disso, a saúde e o bem estar mental de todos os membros e seguidores é também da minha responsabilidade.

Assim, a partir de hoje, entro na missão sagrada de salvar as almas dos pecadores. Cenas desavergonhadas de intimidades e linguagem obscena serão banidas das minhas publicações. Corpos desnudados e lições de anatomia humana pelo método braille não serão admitidos.

Tenho dito!



CAPÍTULO 6


Três semanas depois…

Claire olhou através da janela do escritório para um doloroso céu claro de outono. A luz do sol era tão brilhante e o ar tão seco que as ásperas arestas dos arranha-céu se afiavam ao ponto de parecerem facas ópticas, e os edifícios feriam a vista, dando-lhe dor de cabeça. Caramba, estava cansada.
— Que diabos fazes?
Voltou as costas à paisagem e olhou para o outro lado da secretária.
— Oh, Mick. És tu.
Mick Rhodes, ex-amante, companheiro de trabalho, um bom homem sob todos os ângulos, ocupava toda a moldura da porta.
— Vais-te embora? — Quando simplesmente anuiu, ele sacudiu a cabeça—. Não te vais retirar. Não te podes afastar. Que diabos estás…?
— Perdi a vontade, Mick.
— Desde quando? No final de agosto comias o advogado opositor da fusão da Technitron ao almoço!
— Já não tenho fome. — O que era verdade nos dois sentidos: figurativamente, na parte profissional e literalmente falando. Na última semana tinha perdido o apetite de vez.






Mick alargou bruscamente a gravata vermelha e fechou a porta atrás de si.
— Então tira umas férias. Tira um mês. Mas não atires a carreira toda à merda só por causa de uma falta de motivação passageira. Está bem, a Technitron não correu bem. Haverá outros.
Distraída, ouviu o telefone a tocar na secretária de Martha na entrada. E a conversa dos outros advogados que se apressavam. E o som de bicadas de pássaro de uma impressora.
— Gostei sempre do teu nome —disse ela em voz baixa—. Já te tinha dito isso?
Os olhos de Mick abriram-se como se ela estivesse maluca. Bem, era natural. Ela sentia-se a enlouquecer desde o fim de semana do Dia do Trabalhador quando em vez de trabalhar, tinha dormido três dias seguidos.
A verdade era que ela estava preocupada por se sentir a culpada do fracasso do negócio com a Technitron. Desde esse fim de semana perdido, sentia-se confusa. Débil. Ansiosa e distraída.
— Claire, se calhar devias falar com…
Abanou a cabeça.
— Mas, porque é que te chamam Mick? Nunca te conheci outro nome que não fosse Mick. Michael é um nome tão… bonito.
— Hum, sim. Escuta, acho mesmo que devias falar com alguém
Ele provavelmente tinha razão. De noite não conseguia dormir porque os sonhos a atormentavam e durante o dia estava absorta por uma depressão que não tinha justificação. Certo, a Technitron desabou, e talvez parte da culpa fosse dela, mas só isso não podia ser a causa da apatia que a dominava nem da dor que sentia no peito.
Martha bateu e espreitou pela porta.
— Desculpa, uma chamada da tua médica na linha dois e pensei que gostarias de saber que a velha menina Leeds morreu. O mordomo dela deixou uma mensagem na terça-feira que se perdeu no sistema. Acabei de a receber agora.
A menina Leeds.
Claire levou a mão à cabeça quando uma onda de ódio a varria e as têmporas lhe começavam a pulsar.
— Ah, obrigada, Martha. Mick, falo contigo mais tarde. A propósito, penso que sexta-feira é o meu último dia. Ainda não decidi.
— O quê? Não podes sair assim tão depressa.
— Fiz um rascunho com uma lista dos meus casos, dos meus clientes e do estado de todos os meus assuntos. Deixo o resto para que vocês se digladiarem.
— Jesus Cristo, Claire…
— Fecha a porta ao sair. E Martha, por favor averigua onde e quando é o funeral da menina Leeds.
 Quando ficou sozinha, levantou o telefone.
— Claire Stroughton.
— Vou passar à Dra. Hughes.
Claire franziu a testa e perguntou-se o que teria a conversar com a médica. Os resultados das análises do dia anterior só deveriam estar prontos dentro de vários dias…
— Olá, Claire. — Emily Hughes era particularmente direta. Era por isso que Claire gostava dela—. Sei que estás ocupada por isso não te faço perder tempo. Estás grávida. É por isso que te sentes cansada e com náuseas.
Claire pestanejou. Depois revirou os olhos.
— Não, não estou.
— Estás de três ou quatro semanas.
— Não pode.
— Sei que tomas a pílula. Mas os antibióticos que tomaste no fim de agosto para a gripe podem ter reduzido a eficácia…
— Não é possível porque não tive sexo. — Bem, pelo menos não na vida real. Ultimamente os sonhos eram quentes como o inferno e provavelmente eram eles os culpados da exaustão. Acordava a meio da noite, a retorcer-se, coberta em suor e húmida entre as pernas. E embora tentasse com todas as forças recordar o aspeto do amante dos sonhos, nunca conseguia. Mas, Deus, fazia-a sentir-se espetacular… ao menos até o final da fantasia. No final separavam-se e ela acordava sempre banhada em lágrimas.
— Claire podes estar grávida sem tecnicamente teres tido sexo.
— OK, deixa-me ser mais explícita. Não estive com um homem há mais de um ano. Logo não estou grávida. O laboratório deve ter misturado a minha amostra de sangue com a de outra pessoa. É a única explicação lógica. Porque, acredita, se tivesse tido sexo, eu lembrava-me.
Fez-se uma longa pausa.
— Importavas-te de vir cá recolher outra amostra?
— Sem problema. Passo por aí amanhã.
 Quando desligou, Claire olhou em volta e imaginou-se a tirar os diplomas de Harvard e Yale. Não tinha a certeza para onde iria. Talvez para o norte. Por exemplo: Caldwell era muito agradável. E de facto não precisava trabalhar. Tinha dinheiro suficiente, e se se aborrecesse podia usar as habilitações e fazer algum trabalhinho privado. Era boa com os testamentos e qualquer um com dois dedos de testa podia fechar um contrato de bens imóveis.
Martha bateu e voltou a enfiar a cabeça pela porta.
— O funeral da menina Leeds começa daqui a meia hora, mas é privado. Depois há uma receção na propriedade, chegas a tempo se saires agora.
Tinha mesmo vontade de conduzir até Caldwell? Por causa de uma cliente morta que agora por algum motivo odiava?
Deus, não fazia nem ideia do porquê de sentir aquele desprezo absoluto pela pobre, idosa, louca menina Leeds.
Martha compôs os finos óculos de prata sobre o nariz.
— Claire… estás com mau aspeto. Não vás.
Mas não podia deixar de ir. Embora lhe pulsasse a cabeça ao ritmo dos batimentos cardíacos e tivesse o estômago completamente às voltas, de maneira alguma deixaria de lá ir. Devia ir lá.
— Pede o meu carro. Vou para Caldwell.

 Claire estacionou no final da entrada da propriedade Leeds, atrás de uma fila de cerca de cinquenta carros que se estendia até à mansão. Não usou os serviços dos empregados porque não pensava ficar muito tempo e não havia razão para esperar por alguém para lhe estacionar o Mercedes. Além disso, precisava de apanhar um pouco de ar fresco.
E, pelos vistos, também ia necessitar de um frasco de aspirinas. No instante em que saiu do carro e ergueu a vista para olhar para a grande casa de pedra, a cabeça uivou de dor. Encostando-se ao carro, começou a respirar com dificuldade enquanto o medo a trespassava.
 O mal habitava naquela casa. Havia maldade nela.
— Minha senhora? Está bem?
Era um dos do estacionamento. Um rapaz de uns vinte anos mais ou menos, com um pólo branco e uma legenda MCCLANE’S ESTACIONAMENTO no peito em letras vermelhas.
— Estou bem. — Inclinou-se cuidadosamente entrando no carro para apanhar a bolsa Birk e depois fechou a porta. Quando se voltou para sorrir para o rapaz, ele olhava-a com curiosidade como se ela estivesse a ponto de desmaiar e ele estivesse a rezar para que não o fizesse à sua frente.
— Ah, senhora, vim só buscar este carro. — Disse apontando com a cabeça para o Lexus que estava à frente —. Quer que a leve até à casa de carro?
— Obrigada, mas vou a pé.
— Está bem… se quer assim.
 Foi a subir pela estrada, com os olhos fixos na casa de pedra cinzenta. Quando chegou à porta principal e levantou a aldraba, estava a tremer. Estava enjoada e fraca e sentia como se tivesse gripe outra vez; o corpo era assaltado por ondas alternadas de calor e de frio e a cabeça pulsava.
Fletcher abriu a porta.
Ao ver o velho, Claire retrocedeu a cambalear e sem nenhum motivo aparente entrou num pânico descontrolado.
Mas foi salva abruptamente.
 Os instintos de advogada, aqueles que a tornavam tão eficiente na hora de confrontar os advogados da oposição, os que a convertiam numa negociadora mortífera, os que tinham tomado o controlo uma e outra vez quando não podia permitir que as emoções aflorassem… os instintos ocultaram o pânico repentino e o espanto e acalmaram-na instantaneamente.
Nunca mostres fraquezas perante os inimigos. Nunca.
Mas por que diabos o velho mordomo lhe provocava semelhante reação? De qualquer forma estava agradecida, porque ao menos já não sentia como se fosse desmaiar. Primeiro sentiu-se confusa, agora sentia-se segura.
Claire sorriu serenamente e estendeu a mão, ouvindo os sons do velório.
— Os meus sentidos pêsames. Trago o testamento. — Disse a bater na bolsa.
— Obrigado, menina Stroughton. — Fletcher baixou a vista, os olhos de pálpebras cansadas, a descer ainda mais do que o habitual—. Sentirei saudades.
— Podemos ler o testamento na próxima semana ou depois do velório. O que achar melhor.
Anuiu.
— Esta noite seria melhor. Obrigado pela consideração.
— Sem problemas. — Claire sorriu e agarrou com força as alças da bolsa. Enquanto entrava no átrio, o facto de querer usar um excelente artigo Hermes como arma de arremesso contra o mordomo foi uma surpresa.
 Claire juntou-se à multidão que se deslocava entre a sala de estar e a sala de jantar. Saudou com a cabeça alguns colegas, muitos dos quais Chefes Executivos de companhias nas quais a família Leeds tinha interesses. De entre a centena de homens e mulheres que ali estava, supunha que pelo menos metade pertencia a várias obras de caridade. Sem dúvida antecipando um grande dia de pagamento.
Enquanto chocava com outros ombros, declinava hors d’oeuvres e procurava saber porque estava em modo de ataque quando não havia ameaças, os olhos continuavam a desviar-se para a escada principal. Havia qualquer coisa nela… qualquer coisa… por trás dela.
Abrindo caminho por entre a multidão, acercou-se da grande extensão de degraus ascendentes. Ao pôr a mão na balaustrada ornamentada, ouviu uma voz na cabeça, uma que superou todo o ruído das conversas, a dor de cabeça e o impulso de matar Fletcher.
Atrás das escadas. Vê atrás das escadas. Procura o elevador.
 Sem parar para pensar como sabia o que havia lá atrás, deslizou contornando o flanco da escada e caminhou até entrar num pequeno quarto…
 Onde havia um elevador. Um antigo de bronze e cristal.
 Entra e vai à cave.
A voz não admitia discussões, e estendeu a mão para abrir a porta de metal. Antes de entrar olhou para cima. Na parte superior havia uma lâmpada.
Se usasse o elevador, aquela coisa ia dar sinal. E os instintos diziam-lhe que devia ocultar o rasto. Se Fletcher soubesse o que estava a fazer, não ia conseguir…
Merda, ela não sabia o que estava a fazer. A única certeza que tinha era que devia chegar à cave sem que ele soubesse.
A olhar por cima do ombro, viu uma porta por trás da escada curva e foi para para lá. Tinha um ferrolho de metal e abriu-o antes de experimentar o trinco.
Funcionou...
Do outro lado, havia umas escadas toscas, iluminadas por sombrias e amareladas lâmpadas velhas. Olhou para trás. Ninguém estava a ver e, o que era mais importante, Fletcher não estava à vista.
Deslizando para as escadas, fechou a porta atrás de si e desceu, os saltos a bater no chão e a ecoar a seu redor.
Diabo, faziam muito barulho.
Fez uma pausa, tirou os sapatos e enfiou-os na Birkin. Agora sem fazer ruído, deslocava-se mais depressa, os instintos em alerta total. Deus, a escada parecia não ter fim, as paredes e o chão de pedra lembravam-lhe uma pirâmide egípcia, e antes de chegar ao primeiro patamar sentia como se já estivesse a meio caminho da China. E ainda faltava muito para andar.
Enquanto descia, a temperatura baixava, o que era bom. Quanto mais frio, mais concentrada ficava, até que a dor de cabeça desapareceu e o corpo se transformou em energia pura. Sentia como se estivesse numa missão de resgate, apesar de, maldita fosse, não saber quem ou o quê ia tirar da cave.
As escadas terminavam num corredor da mesma pedra que o resto da casa. As luzes no teto brilhavam fracamente a penetrar a escuridão.
Devia ir para a esquerda ou para a direita? Para a esquerda, só havia mais corredor. Para a direita… só havia mais corredor.
Vai para a direita.
 Caminhou uns quarenta, talvez sessenta metros e em meias não emitia som, o único que se ouvia era o bater da bolsa contra as costelas e o roçar das roupas. Estava prestes a perder a esperança e voltar para trás quando encontrou… uma porta enorme. A coisa era como uma daquelas que se espera encontrar nas masmorras dum castelo, toda cravejada com suportes de ferro e com um ferrolho em forma de barra deslizante tão grosso como um tronco.
Quando a viu começou a chorar descontroladamente.
A soluçar, aproximou-se dos fortes painéis de carvalho. Aproximadamente à altura dos olhos, havia uma espécie de óculo. Pôs-se nos bicos dos pés e espreitou…
— Não devia estar aqui.
Voltou-se. Fletcher estava de pé mesmo por trás dela e tinha um dos braços discretamente escondido atrás das costas.
 Claire limpou as lágrimas.
— Estou perdida.
— Sim, está.
Ela levou uma mão à bolsa e a outra ao bolso do casaco.
— Porque é que desceu até aqui? — perguntou o mordomo, a aproximar-se.
— Não me estava a sentir bem. Queria afastar-me da multidão, quando vi a porta atrás das escadas vim cá parar.
— Em vez de sair para os jardins?
— Estava lá gente. Muita gente.
Ele não estava a acreditar nela e Claire não queria saber. Só precisava que ele se aproximasse um bocadinho mais.
— Porque não foi para uma das salas de estar?
 Quando ele estava mais perto, tirou um dos sapatos da bolsa e atirou-o, rente ao chão, para a esquerda. Fletcher voltou-se para ver o que era e nesse instante tirou o Mace [spray de gás pimenta] que tinha no porta-chaves e pô-lo à altura dos olhos… quando ele se virou e levantou a seringa que tinha na mão, ela acertou-lhe mesmo em cheio na cara.
 Com um uivo, deixou cair o que ia usar e protegeu os olhos, cambaleando para trás até que bateu contra a parede do outro lado.
É óbvio que o Mace era ilegal em Nova Iorque. E, graças a Deus, era uma Lei que andava a infringir nos últimos dez anos.
Rapidamente, Claire pegou na seringa, fincou-a no braço do mordomo e empurrou o êmbolo com força. Fletcher chiou e desabou no chão de pedra.
Não sabia se estava morto ou só a dormir, pelo que não fazia ideia de quanto tempo tinha. Correu para a porta da prisão e partiu duas unhas a lutar com o ferrolho da porta para o fazer deslizar.
A angústia deixava frenética, dava-lhe força para levantar e puxar para o lado o que pareciam ser centenas de quilos de ferro. Quando a barra ficou fora do caminho, agarrou no trinco, empurrou-o para baixo, e usou o corpo todo para arrastar a porta e abri-la.
Luz de velas. Livros. Um sombrio e delicioso aroma…
 Os olhos dispararam a atravessar a distância. Para um homem absolutamente incrédulo, que se levantava de uma escrivaninha cheia de… desenhos dela.
A cabeça de Claire estava zonza, uma dor atroz tirou-lhe a visão. O corpo abateu e depressa os joelhos cederam por completo, o chão de pedra não ia ser um bom amortecedor para a queda.
Num instante, uns braços fortes ampararam-na, levantando-a, levando-a para… uma cama com uma colcha de veludo e almofadas tão suaves como a asa de uma pomba.
Olhou para o homem e ao tocar-lhe no rosto as lágrimas alagaram-lhe os olhos. Deus, aquele belo rosto era o do amante que via em sonhos, que a mantinha acordada durante a noite, por quem tinha chorado durante o dia.
— Como é que regressaste? — perguntou ele.
— Quem és tu?
Ele sorriu.
— Chamo-me Michael.
A dor nas têmporas desapareceu repentinamente… e as lembranças regressaram, uma chuva de imagens e sentimentos, aromas e gostos… todos dela e Michael, juntos naquele quarto.
 Claire agarrou-se a ele e enterrou o rosto no cabelo dele, a soluçar por quase o ter perdido, pelo facto de se a menina Leeds não tivesse morrido, Claire nunca teria voltado porque tinha decidido deixar o escritório.
 Depois ficou danada e afastou-o.
— Porque diabo fizeste aquilo?! Porque é que me deixaste ir embora?! — deu-lhe um murro no peito—. Deixaste-me ir embora!
— Desculpa meu amor.
— Não me venhas com meu amor! — ia continuar com a discussão quando lhe ocorreu que talvez o mordomo só estivesse temporariamente incapacitado. Não sabia o que estava naquela seringa… e o desgraçado tinha aquela força estranha.
 Claire abraçou Michael com força e obrigou-se a acalmar.
— OK… está bem… olha, discutimos isto mais tarde. Agora, vens comigo.
Porém, como é que o ia tirar da casa? Diabo, como é que se ia levantar e pôr-se a mexer? A dor de cabeça tinha desaparecido, mas sentia-se zonza…
Merda. Estava mesmo grávida.
Claire olhou para Michael.
— Eu amo-te.
 O rosto transformou-se, a tensão desapareceu, um amor tão profundo e ardente inundaram-lhe tanto as bonitas feições que aquela visão de anjo lhe fez arder os olhos.
— Eu não te mereço, mas agradeço-te tanto…
— Com todo o respeito e carinho que tenho por ti devo-te dizer para parares com essa merda do «não te mereço». Agora ajuda-me a sair desta cama. — Quando se levantaram ela cambaleou um pouco; depois viu o grilhão que ele tinha no tornozelo.
— Temos de te tirar essa coisa.
Michael deu um passo para trás e abanou a cabeça.
— Não posso ir. Não posso sair daqui. Não me deixam sair. O Fletcher e a Mãe…
— A tua mãe morreu — disse-lhe o mais gentilmente que pôde… considerando que desejava desenterrar a mulher para poder matá-la outra vez.
Michael empalideceu. Pestanejou várias vezes.
— E o Fletcher está inconsciente no chão do corredor. — Como não obteve resposta, pôs-lhe a mão entre as dela—. Michael, queria-te ajudar com o que estás a sentir neste momento, mas não temos tempo. Temos de fugir daqui. Tens que te concentrar.
— Eu… para onde vou?
— Vais viver comigo. Se quiseres. E mesmo que não queiras, vais ser livre. Para fazeres o que quiseres.
Correu a vista pelo quarto, a demorar-se na cama e nos livros.
Pensou que ia teimar em ficar. Era uma consequência das décadas de isolamento e abuso. Precisava de o acordar de alguma forma…
Pegou-lhe na mão e colocou-a na barriga dela.
— Michael, quando estive contigo, criamos uma coisa juntos. Um bebé. Está dentro de mim. O teu filho está dentro de mim. Preciso que venhas comigo. Connosco.
Ficou mortalmente pálido. E então…
Bom, a mudança nele podia tê-la assustado se não acreditasse mesmo que ele não a magoaria. Pareceu crescer, apesar do corpo ser o mesmo, os olhos semicerraram-se, o rosto era uma máscara de autoridade viril… e agressividade extrema.
— O meu bebé? O meu filho?
Anuiu, apesar de agora não ter a certeza de ter feito bem em contar-lhe. 
Agarrou-a e abraçou-a com tanta força que até lhe dobrou os ossos. Quando enterrou a cabeça no cabelo dela, a voz baixou até se converter num rosnado.
— Minha —disse—. És minha. Sempre.
Claire riu-se um bocadinho. E ali ficaram as preocupações acerca de ele querer, ou não, viver a vida sem ela.
— Bem. Acho que estamos noivos. Agora mexe-te. Temos de sair daqui.
— Estás bem? Primeiro diz-me se estás bem.
— Pelo que sei, está tudo bem. Acabei de saber.
— Tens a certeza?
— Posso fazer o que me apetecer. Sou jovem e saudável. — Põs-lhe a mão no rosto —. Temos de ir. Temos mesmo de ir.
Michael assentiu e soltou-a. Caminhando calmamente, dirigiu-se ao lugar onde a corrente que ancorava o tornozelo se prendia na parede e deu-lhe um puxão feroz. Um grande pedaço de cimento saiu com ela, do tamanho de uma cabeça, e Michael baloiçou a bola e atirou-a contra a parede, libertando-se.
Depois voltou para o lado dela como se não tivesse acontecido nada.
— Jesus Cristo! Porque não fizeste isto antes?
— Não tinha nenhum sítio para onde ir. Nenhum lugar melhor onde estar. —Olhou para os livros pela última vez; depois levantou a corrente, enrolou-a à volta do braço, e galantemente estreitou-a com o outro braço—. Vamos.
 Saíram juntos. Fletcher continuava no chão de pedra, mas tinha os olhos abertos e pestanejava lentamente.
— Merda —disse ela enquanto Michael olhava para o mordomo. Depois de lhe examinar a cabeça rapidamente, murmurou—: Deixemo-lo aqui.
Apesar de tudo, considerando que o homem tinha raptado umas cinquenta mulheres e trancado ilegalmente o filho da patroa durante meio século, era improvável que fosse persegui-los pelas vias legais. E pedir a Michael que matasse o tipo era demasiado horrível. Provavelmente porque Michael o havia de matar se ela pedisse.
Meteu a mão no braço do seu homem.
— Anda. Vamos… —o velório no andar de cima era uma complicação—. Merda, há umas cem pessoas na casa. Como é que podemos…?
De repente Michael ficou alerta.
— Conheço uma saída. De quando era pequenino. Vamos por aqui.
Tinham avançado uns nove metros quando deu meia volta. A seringa. As suas impressões digitais estavam na seringa hipodérmica. No altamente improvável caso de Fletcher decidir persegui-la, seria mais difícil sem esse tipo de prova. E o sapato. Tinha de recuperar o sapato.
Era melhor cobrir o rasto todo.
— Espera! — Voltou para trás a correr. Procurou a seringa. Encontrou-a ainda cravada no braço do homem. Ele levantou os olhos para ela no momento em que se baixava para a tirar e pôr na bolsa. Movia a boca. A abrir e fechar como um peixe.
Depois de apanhar o sapato, foi ter com Michael, mas sentia as pernas como se fossem de borracha.
— Estás fraca — disse franzindo o sobrolho.
— Estou bem…
Ergueu-a nos braços e caminhava duas vezes mais depressa do que ela, as enormes passadas devoravam as distâncias pelos corredores da cave. Movia-se com rapidez e determinação, o que a surpreendeu um pouco e que a fez lembrar de que apesar da natureza doce, era um homem, um homem que tinha a sua mulher nos braços. E, Deus, como era forte. Carregava o peso dela todo mais o da corrente e nada disso parecia abrandá-lo.
 Quando chegou a uma porta sólida que estava na ponta mais afastada do corredor da cave, inclinou-se para um lado e testou o trinco. Quando este se negou a abrir, deu dois passos atrás, deu um pontapé em cheio na porta e escancarou-a.
— Cristo — exclamou—. Fazes com que O Exterminador pareça um menino de dois anos.
— O que é um Exterminador?
— Depois explico.
Lá fora, o ar frio da noite caiu sobre eles e Michael hesitou, abrindo muito os olhos. Começou a respirar mais profundamente, como se estivesse com um ataque de pânico.
— Põe-me no chão— pediu calmamente, a saber que ele ia precisar de um minuto para se orientar.
Baixou-a lentamente e olhou para o céu, para as árvores e para o vasto terreno dos jardins da propriedade. Depois olhou o monólito de pedra no qual tinha estado prisioneiro durante tanto tempo. Podia imaginar como se sentia perdido, como as emoções se revolviam nele, como devia estar em conflito por deixar o claustrofóbico bem-estar da prisão. Mas não tinham tempo para ele se habituar.
— Michael o meu carro está no fim da estrada. À frente da casa.
— Eu consigo— sussurrou.
— Sim, consegues.
Pegou-lhe na mão, que estava húmida e quente, e puxou-a. Sem hesitação, ele agarrou nas correntes e levou-a até ao outro lado da imensa casa.
O carro estava estacionado onde o tinha deixado e apressaram-se a atravessar o jardim mantendo-se perto de um muro de sebes. Através das meias podia sentir a erva molhada e fofa e os pulmões tragavam o limpo oxigénio do outono.
Por favor, Deus, deixa-nos fugir inteiros.
 Quando chegaram ao Mercedes, pegou no comando e as luzes piscaram.
— Que tipo de carro é este? — perguntou Michael aturdido—. Parece uma nave espacial —. Depois olhou para os outros—. Parecem todos…
Não era altura para lhe mostrar o seu Car & Driver.  — Entra.
— Minha senhora?
 Claire ergueu os olhos. O empregado, o rapaz que tinha visto antes, estava a aproximar-se. Parecia confuso, como se não pudesse explicar de onde ela tinha saído. Ou talvez só o surpreendesse o facto de a ver com um homem enorme de robe de seda vermelha e com uma corrente enrolada à volta do braço.
— Estamos de saída —disse saudando-o com a mão enquanto dizia a Michael—: Entra na merda do carro.
 O rapaz esfregou o cabelo espetado.
— Ah…
— Obrigada pela ajuda. — Apesar de ele não lhe ter dado nenhuma.
 Sentiu mais do que alívio quando ligou o motor e começou a sair dali…
Outro Mercedes apareceu por trás dela, impedindo-a de fazer marcha atrás ou dar a volta para sair diretamente para a estrada principal. Não teve outra opção se não dirigir-se para a rotunda dianteira à mansão onde os empregados estavam alinhados e muita gente passava.
Merda.
— Baixa a cabeça —disse a Michael ao aproximar-se da porta principal.
Por favor, por favor, por favor…
 Exatamente quando passava à frente da mansão, um casal de idosos atravessava para entrar no carro. Com o Mercedes atrás e o Cadilac do casal a bloquear o caminho, estava presa.
O suor escorria-lhe pelos peitos e debaixo dos braços e as mãos esticavam-se sobre o volante.
A porta principal abriu-se e teve a certeza de que ia ver o mordomo sair aos tropeções.
Mas era só outro casal de idosos, com um bilhete na mão enquanto se aproximava do empregado.
Os olhos de Claire voltaram-se para o carro da frente. O homem estava atrás do volante mas a mulher estava a conversar com o rapaz que lhe segurava a porta aberta. Mexe-te, vovó! É óbvio que a mulher não se mexeu. Quando finalmente se sentou, arranjou a saia e parecia que resmungava com o marido, depois voltou-se para trás para o empregado.
 Cento e cinquenta e cinco milhões de anos depois, as luzes de travão do Cadilac cintilaram e o carro começou a andar a uma velocidade torturante.
 Com o coração aos saltos, as mãos tensas e os pulmões solidificados, Claire rogou e suplicou ao universo que os deixasse fugir.
E então aconteceu.
 O Cadilac desceu a colina. E ela também. E entrou na estrada principal atrás do casal. Depois começou a afastar-se a cinquenta quilómetros à hora da propriedade Leeds.
Assim que viu a linha tracejada, colou o acelerador ao fundo e ultrapassou o Cadilac.
 Com os olhos fixos na estrada, procurava dentro da bolsa. Precisava do telemóvel. Onde estava o… tirou-o e carregou na tecla de marcação rápida.
Enquanto o telefone tocava, olhou para Michael. Estava apalermado no assento, com os braços esticados, um na porta e o outro no banco, e tinha as pernas entaladas debaixo do porta-luvas. Estava branco como a pasta dos dentes e os olhos moviam-se de um lado para outro dentro das órbitas.
— Põe o cinto de segurança —disse—. À direita. Baixa a mão e passa-o por cima de ti, como fiz com o meu.
Encontrou o cinto e colocou-o, depressa voltou à posição de veado-à-frente-dos-faróis, a preparar-se para uma colisão iminente que não ia acontecer.
 Ocorreu-lhe que era muito provável que ele nunca tivesse andado de carro.
— Michael, não posso abrandar. Eu…
— Estou bem.
— Vamos a… — A chamada foi atendida, a saudação do homem foi um alívio incrível—. Mick? Graças a Deus. Escuta, estou a caminho da tua casa e preciso de alguns favores. Grandes favores que nunca serei capaz de retribuir… obrigada. Ó, meu Deus, obrigada. Perto de uma hora. E levo uma pessoa comigo. — Desligou e olhou para ele. - Isto vai acabar tudo em bem. Vamos para a casa de um amigo que vive em Greenwich, Connecticut. Podemos ficar lá. Vai-nos ajudar. Vai ficar tudo bem.
Pelo menos esperava que assim fosse. Partiu do princípio que o mordomo não ia persegui-los pelos meios legítimos, mas enquanto conduzia pela noite, deu-se conta de que havia outras formas de perseguir alguém. Formas que não envolviam o sistema legal humano. Merda. Não havia maneira de saber que tipo de recursos tinha Fletcher ao seu dispor, e se durante este tempo todo tinha conseguido os recursos suficientes para sair impune com o que fazia, era inteligente.
 O que significava que devia ter a sua matrícula. E que também sabia onde vivia, não era? Porque… Ó, Deus, depois daqueles três dias passados com Michael, acordou na cama, em casa. Fletcher, sabe Deus como, tinha-a levado para lá.
Provavelmente ele também tinha alguns truques mentais ao seu dispor.
Provavelmente deviam tê-lo matado.



4 comentários:

Alex Nason disse...

Isto está casa vez mais intenso! :o
Quero mais!
E obrigada por apelares ao meu bom estado de sanidade mental morceguinho!
Eu agradeço. Agora acho que poderias... Sei lá, mais uma cena Qhuinn/Blay? :p
Beijinhos

Viv disse...

Yay!!! He's free! ;P

Estou feliz que a Claire tenha conseguido salvar o Michael, mas coitado do bicho, está aterrorizado.

vou ficar à espera do próximo capítulo. ^^

Margarida disse...

MorCeGuinha, aqui a menina só vai mesmo ter "uma vida sossegada por tua causa " se tudo continuar a correr tão bem como até aqui!!! (sorrisos). Estou a adorar tudo e claro que só quero ...mais!!! Beijinhos <3

Marg2 disse...

Olá MorCeGuinha, realmente eu fico mesmo muito contentinha quando venho aqui e está lá mais um bocadinho desta história, estou "mortinha" para saber como vai ser a seguir, há e do Qhuinn/Blay, está mesmo "quente"
BJS

 

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